domingo, 5 de agosto de 2007

Espiritualidade de cima e de baixo (Parte 2), por Anselm Grüm.



Exemplos da Bíblia





A Bíblia nunca nos apresenta como modelos de fé pessoas perfeitas e sem falhas, mas, sim, justamente pessoas que carregam uma grave culpa e que invocaram a Deus do fundo do abismo. Vemos aí Abraão, que no Egito renega sua mulher e aapresenta como sua irmã, a fim de conseguir uma vantagem. Isto faz com que Faraó a tome para seu harém. Deus mesmo precisa intervir para livrar o pai de fé da mentira (Gn 12,10-20). Aí está Moisés, que libertou Israel do Egito. Ele é um assassino. Em um momento de ira, matou um egípcio. Moisés tem que primeiro se confrontar com sua inutilidade, que ele vê refletida na imagem da sarça ardente, para, como um fracassado, entrar a serviço de Deus. Eis, aí Davi, modelo perfeito do rei de Israel e modelo para todos os demais reis. Ele carrega sobre si uma culpa grave quando dorme com Betsabé, a mulher de Urias. Depois de a ter engravidado, ele ordena que o hitita Urias seja deixado sozinho na batalha, para ser morto. Os grandes vultos do Antigo Testamento tiveram que passar pelo fundo do vale para colocar sua esperança unicamente em Deus...

No Novo Testamento, Jesus escolhe Simão Pedro como rochedo e alicerce para sua comunidade. Pedro não compreende Jesus. Pretende demovê-lo de seu caminho para Jerusalém, que o leva à morte certa. Jesus o chama de Satanás e o manda afastar-se (Mt 16,23). Por fim, Pedro nega Jesus depois que ele foi preso. Ainda no caminho para o Monte das Oliveiras, ele havia afirmado solenemente: "Ainda que tenha de morrer contigo, não te negarei" (Mt 26,35). Primeiro, ele precisa sentir que, por si só, não pode oferecer nenhuma garantia, mesmo depois de promessa tão solene. Quando, enfim, negou a Jesus, ele "saiu para fora e chorou amargamente" (Mt 26,75). Os evangelistas não quiseram enfeitar a negação de Pedro. Tudo indica que, para eles, era importante confessarem impiedosamente que Jesus não havia escolhido apóstolos piedosos e confiáveis, mas justamente pessoas pecadoras e fracas. E, não obstante, foi justamente sobre estes homens que Jesus edificou sua Igreja. Foram eles as testemunhas certas para a misericórdia de Deus... Precisamente por sua culpa, Pedro transformou-se em rochedo. Pois, sentiu que não é ele que é o rochedo, mas somente a fé, a que tem que agarrar-se para, na tentação, permanecer fiel a Cristo.

Paulo, como fariseu era um típico representante da espiritualidade de cima. Ele diz a respeito de si mesmo: "No zelo pelo judaísmo ultrapassava muitos dos companheiros de idade da minha nação, mostrando-me extremamente zeloso das tradições paternas" (Gl 1,14). Cultivou os ideais dos fariseus, observou rigorosamente todos os mandamentos e prescrições, para assim cumprir a vontade de Deus. Mas, no caminho de Damasco, ele é derrubado e todo o edifício de sua vida desmorona. Caído por terra, ele se confronta com a espiritualidade de baixo. Torna-se desamparado, impotente. E fica sabendo que Cristo mesmo age sobre ele e o transforma. Sua mensagem de justificação só pela fé é um testemunho desta experiência. Ela mostra que não podemos chegar a Deus através da virtude e da ascese (exercícios espirituais), mas somente reconhecendo a própria fraqueza. Só então é que adquirimos um sentido para o que a graça realmente é. Mesmo após a coversão, Paulo não é uma pessoa plenamente curada e transformada. Ele sofre de uma doença que manifestamente o humilha. Afirma a respeito e si próprio: Para que as grandezas das revelações não me levasse ao orgulho, foi me dado um espinho na carne, um anjo de Satanás que me esbofeteia e me livra do perigo da vaidade" (2Cor 12,7). A doença não impede que Paulo mesmo assim anuncie a Boa-Nova. Paulo gloria-se precisamente nas suas fraquezas... a experiência de sua enfermidade, que manifestamente o incomoda, deixa-o aberto para a graça de eus, que é a única coisa que importa. Melhor do que qualquer outro, ele anuncia a redenção libertadora em Jesus Cristo. Por isso, Deus não o livrou da doença. Pelo contrário, deu-lhe como resposta: "Basta a minha graça, porque é na fraqueza que a força chega a perfeição" (2Cor 12,9). força de Deus atua tanto mais intensamente quanto mais fraca é a nossa própria força... por iso Paulo aceita sua impotência e sua fraqueza. "Pois, quando me sinto fraco, então é que sou forte" (2Cor 12,10).

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